O início do cadastramento de pessoas no
Pix, o sistema de pagamentos
instantâneos do Banco Central foi um primeiro passo para
a substituição da moeda em espécie pelo real digital. O Brasil precisa
acompanhar a “tendência mundial” de lançamento de CBDCs — moedas digitais
nacionais emitidas por bancos centrais.
A
ideia está na pauta do BC brasileiro, segundo Roberto Campos Neto, presidente
da instituição, que declarou crer que, já em 2022, o real digital estará em
circulação, coexistindo com as versões em notas e moedas. A declaração de
Campos Neto, no mês passado, foi seguida pela de Christine Lagarde, presidente
do Banco Central Europeu (BCE).
Ela disse que virá a
público, em breve, a decisão sobre a adoção ou não de uma versão digital do
Euro. “Como muitos outros bancos centrais em todo o mundo, estamos explorando
os benefícios, riscos e desafios operacionais de fazê-lo”, afirmou. O BC da
China já faz testes de uma versão digital de sua moeda em algumas regiões do
país, e outras autoridades monetárias pelo mundo também caminham no mesmo
sentido.
Mas afinal o que são essas moedas e por
que faz sentido os BCs emiti-las? Nos últimos anos nós passamos por um processo
de digitalização em várias áreas, inclusive no mundo financeiro. Hoje, é
possível abrir conta em um banco de forma 100% digital em questão minutos,
transferências de recursos levam segundos para acontecer e os pagamentos em
vários lugares já são feitos de forma instantânea.
Com
isso, o uso de moeda em espécie no mundo tende a cair, explica João Marco
Cunha, gestor de portfólios da Hashdex. A adoção de uma moeda digital por parte
dos governos traria uma série de benefícios, como a maior rastreabilidade dos
recursos, por exemplo.
“O papel moeda é um facilitador de
ilícitos. Pensa em qualquer operação policial, sempre encontram grandes
quantidades de dinheiro vivo. O custo social disso é gigantesco. Precisa ter
esforço, precisa ter vontade de o governo fazer isso [a substituição da moeda
em espécie pela digital]”, disse.
“Todos
os princípios que norteiam as moedas físicas valem para a moeda virtual. A
grande diferença é existir um papel ou não. É moeda em circulação, não muda a
forma como o BC controla o sistema. Mas é claro que se você emitir moeda, você
gera inflação. Então é preciso que os governos substituam o papel pelo digital,
mesmo que aos poucos”, completou.
Sobre
o acesso limitado de parte da população à internet e smartphones no Brasil,
Cunha disse que não vê isso como um empecilho para o real digital. “Há cerca de
220 milhões de smartphones ativos no país, mais de um por habitante. O custo de
incluir a pequena parcela da população que ainda não tem acesso a um aparelho
desses será ínfimo diante da economia proporcionada com a redução dos índices
de criminalidade”, afirmou.
O
especialista Gustavo Cunha, ex-diretor do Rabobank Brasil e colunista do
InfoMoney, destacou outros pontos positivos da adoção do real digital. Um deles
seria no câmbio: “atualmente, fazer transferências entre diferentes países e
moedas é custoso, burocrático e demorado. Uma CBDC com características
semelhantes ao do Bitcoin tornaria esse processo mais barato, ágil e fácil, com
efeitos importantes para as economias”, disse.
Em
países onde há uma grande parcela de desbancarizados, com alta penetração de
smartphones e com alta propensão a abraçar novas tecnologias (caso do Brasil),
a implementação de uma CBDC de varejo poderia trazer uma imensa inclusão
financeira, o que certamente ajudaria no crescimento do país em médio e longo
prazo, na visão do especialista.
“A digitalização total do dinheiro não irá demorar.
Países que ficarem à margem desse processo ficarão à margem do mundo. Se não
couber ao Banco Central liderar esse processo, que ele ao menos crie ambiente
para a iniciativa privada fazê-lo via stablecoins privadas”, completou.
CBDC x Bitcoin e outras criptomoedas
Embora as moedas digitais que serão emitidas pelos
bancos centrais em alguns casos também possam utilizar o sistema de blockchain
para controlar as movimentações instantâneas de recursos, elas são diferentes
do Bitcoin e outras criptomoedas já existentes.
“São coisas diferentes. O fundador do Bitcoin fez
um sistema de transferência de dinheiro entre pessoas sem intermediários. A
gente não precisa confiar num banco ou num governo, é o algoritmo que passa de
um para o outro. É um sistema descentralizado e não tem uma terceira parte
confiável validando as operações”, disse o gestor da Hashdex.
“Já o sistema de CBDC é ao contrário. O Banco
Central passa a ser a parte confiável. O poder do estado é a parte central. Ele
é centralizado. O estado passa a saber, ele tem o registro de todo dinheiro que
você está circulando. Para o BC é bom, aumenta a rastreabilidade do dinheiro. E
para quem não ‘deve nada’, não sonega impostos por exemplo, também. É uma
relação direta entre a pessoa física e o Banco Central”, completou João Marco
Cunha.
As discussões e possibilidades para digitalização
das moedas são muitas e cada país deve buscar a que melhor refletir suas
legislações e anseios de seus cidadãos. Para o gestor da Hashdex, apesar de
serem uma tecnologia completamente diferente dos criptoativos, a disseminação
das moedas digitais pode ajudar a quebrar barreiras comportamentais à adoção,
ao tornar o grande público mais familiarizado a ter valores totalmente online.
Os contras
Embora tenha muitas vantagens, o CBDC também cria
muitos problemas, na avaliação de Jörg Krämer, economista-chefe do banco alemão
Commerzbank. “Se ele substituir completamente as notas físicas, as pessoas não
serão mais capazes de evitar uma taxa de juros negativa”, disse.
“Com o dinheiro digital, os bancos centrais podem impor taxas de juros de prêmio muito mais altas do que o custo de armazenamento do dinheiro. A manipulação da taxa de juros fica mais fácil — com todos os riscos que isso acarreta, como o surgimento de bolhas perigosas nos mercados financeiro e imobiliário”, completou.
Um
outro problema surge quando os cidadãos desejam trocar seus depósitos em bancos
comerciais por dinheiro digital do banco central, continuou o economista-chefe
do Commerzbank. “Os bancos devem então transferir a mesma quantia em dinheiro
do banco central para as contas dos cidadãos no banco central. Isso cria uma
lacuna de financiamento nos bancos”, disse.
“Se
o banco central tentar resolver isso comprando títulos governamentais e
corporativos dos bancos comerciais e transferindo os valores correspondentes a
eles, ele assume os riscos de crédito dos bancos. Na verdade, os empréstimos
estatais do banco central impedem os empréstimos privados em grande escala e
distorcem a alocação da poupança; o resultado seria a criação de ainda mais
empresas e estados zumbis.”
Segundo Krämer, em princípio, todos esses problemas podem ser evitados com
medidas adequadas. Por exemplo, taxas de juros negativas significativas sobre
os saldos do banco central poderiam ser proibidas ou o banco central poderia se
comprometer a fornecer aos bancos os saldos adicionais necessários, não por
meio da compra de títulos, mas da concessão de empréstimos.
“Mas
até que ponto essas salvaguardas são confiáveis na zona do Euro, onde tantas
regras já foram quebradas? Na dúvida, o dinheiro digital do banco central torna
o estado mais poderoso às custas de seus cidadãos. E sem necessidade. Afinal,
há muito os cidadãos conseguem pagar com seus saldos bancários com um clique do
mouse, e a concorrência está levando à digitalização desse dinheiro privado”,
concluiu.
InfoMoney
Foto: GettyImagens
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